domingo, outubro 01, 2006

Medo da reacçao islâmica assusta criadores europeus

Depois de ter lido este artigo de autoria de Alexandra Prado Coelho publicado no "Público" e que demonstra que o terrorismo e o medo do islamismo se está a tornar uma obcessão, não resisti em o transcrever


O cancelamento de uma ópera de Mozart em Berlim abriu o debate na Europa sobre a auto-censura. Intelectuais e criadores falam sobre a decisão tomada pelos responsáveis da Deutsche Oper e sobre como estas tensões afectam a arte.

Desta vez não chegou sequer a haver protestos. A directora da Deutsche Oper de Berlim decidiu cancelar a ópera Idomeneo de Mozart, onde aparecia a cabeça decapitada do profeta Maomé, porque terá havido um telefonema de ameaça e a polícia alertou para o risco de violência. Imediatamente rebentou na Alemanha e por toda a Europa o debate: estamos a recuar perante a pressão dos sectores radicais do islão? Estamos a auto-censurar-nos? No Ocidente os criadores e os intelectuais têm medo? Já nem esperamos pelas manifestações?Ao mesmo tempo, em França, Robert Redeker, professor de Filosofia, foi ameaçado de morte e posto sob protecção policial depois de ter escrito no Figaro um artigo em que considerava o Corão "um livro de violência inaudita" e acusava Maomé de ser um "mestre do ódio". Estes episódios passam-se em plena polémica causada por declarações do Papa Bento XVI sobre o profeta do islão e consideradas também ofensivas por alguns muçulmanos. E exactamente um ano depois de um jornal dinamarquês ter publicado uma série de cartoons sobre Maomé que acabaram por provocar uma explosão de violência que matou pelo menos 139 pessoas. "Estamos claramente em recuo. Não sei se é uma tendência inelutável, mas existem sinais", afirma Paulo Tunhas, e co-autor, com Fernando Gil, do livro Impasses. E ironiza: "Podemos propor um negócio: não se repõe a encenação [do Idomeneo] e os muçulmanos retirarão do Corão todas as diatribes, que não são poucas, contra judeus e cristãos - seria o princípio do pacto de não-agressão, como propõe [o escritor, José] Saramago". A "única reacção decente" num caso como o da ópera é, diz Tunhas, "não transigir". Porque "uma cedência nestes casos implica milhões de cedências no futuro".

Dessacralizar a cultura
Diogo Infante, director do teatro Maria Matos, poderia, como programador, confrontar-se com um dilema destes. "Gosto de pensar que não recuaria, e a minha primeira reacção é de que não devemos pactuar. Mas é preciso ter algum cuidado porque são assuntos que estão muito inflamados". Claro que, acrescenta, "a arte deve ser livre de amarras, e ter uma posição política, intervir". Até porque "o que é ofensivo para uns, provoca a dúvida noutros, e esse tipo de debate parece-me essencial".

E o que é ofensivo em determinados momentos históricos, não o é noutros. Joaquim Caetano, historiador de arte e director do Museu de Évora, recorda que durante a maior parte da história da cultura ocidental não houve este tipo de fricção com a cultura islâmica, até porque esta aparecia muito pouco nas manifestações artísticas ocidentais - há, sim, uma tradição de representação negativa dos judeus.

Mas no Ocidente "dessacralizou-se a cultura e passámos a olhar para as coisas como produtos culturais, cujo valor não é dado pelo tema mas pelo autor, pela qualidade da obra. Isso é uma coisa que o pensamento primitivo, e o pensamento religioso que é muito próximo dele, não faz". O problema é que, neste momento, "há medo de tudo". "Será justo ficarmos reféns?", continua Caetano. "Se se opta por recuar alguns séculos por medo das reacções, estamos a perder o essencial.

"E a História? Toda ela está cheia de referências que podem ser consideradas insultuosas. "Estaríamos dispostos, por exemplo, a queimar todos os livros que dizem mal do islão?", interroga-se Joaquim Caetano. "É absurdo. Não podemos fazer uma revisitação do passado com medo de ofender alguém. Grande parte da cultura ocidental é machista, goza com os deficientes, mas faz sentido que as feministas ou as associações de deficientes venham exigir que isso seja apagado?". Santiago Macias, arqueólogo especialista no período islâmico, acredita que as manifestações e os protestos se multiplicam porque "a base da desconfiança está criada" e "existe uma susceptibilidade à flor da pele". Também ele considera que "a ópera devia ser representada, pura e simplesmente... não há nenhum motivo para entrarmos por esse caminho [da censura]". Até porque está convencido de que "se não fosse a situação política, [a representação de Maomé] poderia causar desconforto numa ou outra pessoa mas não causaria este tipo de escândalo". António Pinto Ribeiro, programador-geral do projecto O Estado do Mundo, da Gulbenkian, concorda que quando se toma uma decisão como a da Deutsch Oper está-se a "incorporar uma chantagem que é de natureza política, embora com uma manipulação religiosa por algumas facções fanáticas".

Uma reacção destas - em que há, na descrição de Joaquim Caetano, uma "auto-censura com base numa possibilidade" - mostra que o medo já existe. "Sim, isso já está a acontecer, algumas pessoas, grupos, criadores auto-censuram-se", admite Pinto Ribeiro. Mas, por outro lado, detecta um efeito positivo: uma muito maior atenção e reflexão sobre os artistas islâmicos contemporâneos.

Provocações
Quais são, então, os limites que deve ter a arte - se é que deve ter alguns? "Não concebo nunca que a arte seja propositadamente ofensiva. Se o fosse deixaria de ser arte", afirma Pinto Ribeiro. Por outro lado - e agora é Diogo Infante quem o diz - "a arte vive da provocação e sem ela não faz sentido", pelo que "num criador as únicas limitações devem ser as da sua própria ética".Tariq Ramadan é um dos mais importantes intelectuais muçulmanos da actualidade e uma figura de referência para muitos muçulmanos na Europa, onde vive. Para ele, a distinção entre obra de arte e provocação gratuita é clara. "O problema são as provocações", disse ao Libération. "Não me refiro à encenação do Idomeneo, que faz parte da criação artística: não havia nenhuma razão para a ópera ser cancelada. Refiro-me aos intelectuais que apostam na provocação", explica, visando o professor francês Redeker pelo texto no Figaro.

Dias antes, ao Le Monde, Ramadan deixara um conselho: "Os muçulmanos devem adoptar uma distância intelectual crítica em relação às questões que lhes são colocadas ou à ironia que têm que enfrentar."

PÚBLICO.dia 1 out 2006

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