segunda-feira, janeiro 08, 2007

Chamava-se Sara

Este texto chegou-me por email e segundo quem me mandou é de autoria de Inês Pedrosa e por o considerar de grande importância no momento atravessamos resolvi divulgá-lo aqui





Chegava ao infantário com os dedos cortados, manchas negras no corpo, o corpo a tremer de frio dentro da roupa demasiado escassa e pedia pão. Comia sofregamente, o dobro das outras crianças. Não se ria nem sabia brincar. Ao fim do dia regressava à câmara dos horrores que era a casa dos seus autores biológicos: ficava refém da mulher de cujo ventre nascera e que a espancava e a fazia passar fome e frio. Chamava-se Sara e não chegou a completar trinta meses de vida: morreu devagar, sofrendo torturas diárias. A progenitora já confessou que de facto espancou a criança e a lançou pelas escadas abaixo, mas «sem intenção de matar». Também não terá tido intenção de matar Sara a pessoa da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens que, alertada no passado dia 4 de Dezembro pela educadora do infantário das marcas de violência visíveis no corpo da menina, agendou uma visita à casa da família para o dia 28 – ou seja, para daí a 24 dias... Terá pensado o quê? Que as crianças são muito resistentes? Que as educadoras de infância são exageradas? Que estas coisas podem esperar para depois do Natal?

O progenitor masculino de Sara alega não ter dado por nada: saía cedo e entrava tarde, diz ele, trabalhava muitas horas, o que é certamente bom para o país e melhor para ele, que continua a não dar por nada, em liberdade. Uma criança de dois anos espancada e esfomeada dá pouco nas vistas. E não se ouve: lançada das escadas, confessou a mãe. A vizinhança estaria toda a trabalhar enquanto estes actos ocorriam? Tanta e tão serena produtividade naquelas bandas de Monção. O choque tecnológico no seu máximo esplendor.

A família estava já assinalada como de risco desde 2005 na Comissão de Protecção de Menores de Viseu, onde então habitava, e Sara chegou a viver três meses com a avó paterna – mas a presidente da referida Comissão, Maria do Carmo Sá, entendeu que o lugar da criança era junto dos progenitores, e retirou-lha. Há um ano, outra bebé, Fátima Letícia, entrou em coma depois de seviciada pelos pais – embora o seu caso também estivesse referenciado, na mesmíssima Comissão.

Por outro lado, os irmãos de Sara andavam agasalhados e sem marcas de violência. É estranho, comentam agora as pessoas. Já enquanto Sara era viva estranhavam, uns com os outros, pacatamente, essa diferença – estranhavam Sara, quero dizer. Porque se havia mais três e eram bem tratados, o problema devia estar em Sara. O problema é sempre das vítimas, e as meninas, sendo mulheres em miniatura, são, desde logo, especialmente perversas. Mini-saias, sorrisos amplos, ou a recusa de certas tarefas domésticas têm aparecido em acórdãos de tribunal como atenuantes para crimes de violação ou de homicídio de mulheres. As pessoas terão pensado que Sara se portava pior do que os irmãos, e por isso era maltratada pelos pais. Naturalmente. A determinação das pessoas para o pensamento ou para a compaixão só é ágil depois da tragédia. Quantos dos chorosos participantes no funeral de Sara não a terão ouvido chorar desesperadamente em vida? É mais fácil pretender amar uma criança morta do que amar uma criança viva. Segundo o «Correio da Manhã», que esteve lá e ouviu (é essa a missão do jornalismo: ir de facto aos sítios, ver, ouvir e transmitir) na homilia da missa de corpo presente de Sara, o padre José Carlos Matos perguntou: «Que Estado é este que não se importa de gastar dinheiro com a morte, permitindo o aborto, e não tem dinheiro para preservar a vida? » O comum dos mortais talvez não perceba a relação entre o dinheiro, o aborto e a morte de Sara. Eu percebi duramente a que ponto chega o desrespeito da Igreja Católica pelos mortos e pela dor dos seus próximos, quando, há oito anos e meio, em vez de palavras cristãs de consolação e alento, recebi uma sessão de campanha do referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez, ao lado do caixão do meu pai. Nessa época tive a ingenuidade de pensar que tínhamos tido azar com o padre. Mas quando este Natal vi, na RTP, o cardeal patriarca utilizando o nascimento de Jesus Cristo como trampolim acrobático para chegar à condenação dos que defendem a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, percebi finalmente que na religião, como infelizmente na política, os fins justificam os meios, e os sentimentos das pessoas são explorados sem qualquer pudor.

Sara merecia ter entrado no Céu – tem de haver um céu que faça justiça a estas crianças – com as palavras carinhosas e sábias que o menino Jesus teria para ela, se ainda andasse por este mundo. São cem mil as crianças portuguesas em risco. Quantas estarão a ser torturadas no preciso momento em que escrevo esta frase? Sempre que um adulto é feito refém, em Portugal ou no Estrangeiro, o Estado defende-o, como é sua obrigação. Às crianças, continua a tratá-las como propriedade dos que as fizeram nascer. Se o inquérito à morte de Sara resultar em nada, como todos os outros, mobilizar-nos-emos para processar o Estado. Neste ano novo, temos de ser capazes de dizer: basta.

Estou